domingo, 24 de maio de 2020

Sobre homens e cavalos.


Esta história se passa no interior do Estado do Rio Grande do Sul, na fronteira do Uruguai, não saberei precisar a localidade, mas tentarei descrever com o máximo de detalhes para que possam “ver” com clareza as belezas deste lugar.

Tão longe quanto a vista poderia vislumbrar um por de sol avermelhado, com toques de laranja e amarelo, as nuvens escorriam pelo céu e estacionavam ali circundando o astro rei que se escondia lentamente atrás de um morro. Havia uma enorme figueira frondosa copada em forma de cogumelo, suas raízes enormes se espalhavam pelo chão erguendo pedras e criando brotos. Sentado abaixo dela, em um banco de madeira, curvado para frente, escorando um dos braços cansados do serviço diário em uma das pernas, estava um homem de aparência cansada. Suas vestes surradas de serviços esgotantes, era um trabalhador rural, domador de cavalos. Este serviço esgota e cobra na carne de quem o toma por profissão. Suas botas de cano alto na cor marrom, completamente empoeiradas e com barro no solado, nos calcanhares suas esporas longas no papagaio com rosetas pequenas. Sua bombacha fora um dia da cor marrom clara, hoje já está desbotada após tanta exposição ao sol, surrada de esfregar cordas  e entre as pernas o tecido já desgastado de tanto montar em cavalos (ou como se fala por lá: sovar o lombo). Uma camisa dobrada nas mangas na cor bege, um lenço curto na cor vermelha amarrado no pescoço, na cabeça nada além de seus cabelos pretos e lisos cortados baixos e curtos em um estilo militar. É claro que um homem do campo deve usar um chapéu, mas nesta hora depois de estafante dia, tomado de suor e poeira, seu chapéu estava repousando ao solo junto de um relho. O homem com uma aparência cansada, pensativo admira o pôr do sol, solitário neste lugar tão distante onde habita. O sopro do vento na copa das árvores, o relincho dos cavalos ao longe e o canto de uma cotovia são as vozes que lhe fazem companhia, além é claro de seu chimarrão indispensável. Consome esta bebida que acalma junto ao crepúsculo, alimentando seu espírito e trazendo conselhos de muita sabedoria.


 Rompendo o silêncio da localidade, o homem ouve ao longe patas de cavalo em disparada. Ergue sua cabeça, atenta os ouvidos, cada vez mais próximo esta, fica em pé e olha aos lados, na sua esquerda um galpão feito de madeira e telhado com capim, que lhe serve como morada, a sua frente baias de cavalos, na direita um descampado, onde o sol acaba de se esconder e seus poucos raios insistem em brilhar, o céu já não tão rubro, mas um tom de azul marinho vai se estendendo ao encontro do preto do céu da noite criando um degrade de cores que enfeitiça o olhar. Olha atentamente para trás de onde pode ouvir com clareza as patas de cavalo, que antes eram distantes, agora já bem próximas. Ouve galhos quebrando e folhas sendo pisoteadas no interior da mata, fica um pouco apreensivo e ansioso. Leva a mão na faca que esta em sua cintura, como quem se prepara para uma luta, retira um tanto da bainha, seu semblante se fecha e chega a apertar os dentes. Cada vez mais próximo o barulho amplificado pela acústica da mata, as folhas caem das árvores, os pássaros que já se aninhavam para esperar a noite acabam por voar assustados com a surpresa.


Em pé, com o olhar fixo para dentro da mata, ele é surpreendido pela pintura de cavalo que sai de lá. É uma égua jovem, de pelagem baia ruana (pelagem creme amarelada, com brilho e bastante variações, com a cauda e a crina claras). Sua crina dourada escorrida pelo pescoço delgado, suas patas fortes a empurravam para a frente, arrancando pasto e terra do chão. Seguiu em sua direção, vinha em fuga. Ele permaneceu firme e estático impressionado pela beleza do animal enquanto ela diminuiu a velocidade. Afinal, também estava espantada com o homem e naquele instante parou arrastando as patas traseiras e erguendo terra do chão. Estava tão próxima do humano que respingou barro em seu rosto, mas ele nem piscava. A égua parada, ofegante, suada, com os olhos bem abertos, grelados como se estivesse assombrada, claramente assustada.


Agora que está bem próxima é  possível ver marcas profundas em suas patas traseiras e pescoço, provavelmente feitas por cordas. Em suas patas dianteiras marcas de cortes, estas se alinham com outras no peito, talvez tenha violado alguma cerca no caminho, concluiu o homem. Ele estático olhando para ela, seus braços ao longo do corpo quase que imóvel, ela também com olhos fixos nele, ofegante. Ainda é possível ver em seus flancos o abrir e fechar dos pulmões, suas patas inquietas para cima e para baixo, parece que quer sair em disparada, mas não pode, fica no mesmo lugar. Ele ergue sua mão direita que antes segurava o cabo da faca, leva a palma ao encontro do rosto da égua, seu movimento é lento para que ela não se assuste, mesmo assim ela reage. “Calma!” diz o homem, ela olha, cheira fazendo um ruído com as narinas, ele permanece com a mão erguida tentando ainda o contato. Ela aceita. Quando a mão toca a fronte ambos se acalmam. Ele inicia um afago de leve no rosto do animal, é possível ver suas orelhas virando cada uma pra um lado, buscando algum perigo, aos poucos elas param e se voltam na direção do homem. Agora, com a mão esquerda, ele afaga o pescoço, ela encosta a cabeça em seu peito, ficam em silêncio trocam gestos sem que possam conversar. O lugar todo se acalma, os pássaros tomam a seus ninhos para o repouso da noite que já cobriu o céu. Aos poucos, um cativa o outro.

Passaram-se horas do encontro, o homem se pergunta o que teria acontecido, por que ela estaria tão assustada, por certo alguém lhe havia feito muito mal. Certamente ela não iria lhe contar os detalhes de seus medos, não é de sua natureza falar, ele teria que notar aos poucos nos detalhes. Colocou em um recipiente de madeira um pouco de comida, em um balde ofereceu-lhe água. Ela aceitou, parecia faminta. Indicou onde poderia repousar. Após se alimentar e beber, deitou e adormeceu, sentia-se segura finalmente. O homem recolheu seus pertences que estavam próximo à árvore e se foi para cama repousar, ainda pensado no acontecido, mas sem respostas todavia.

No dia seguinte, bem cedo, nem o sol havia saído, ele já estava pronto. Chimarrão na mão, foi ver como a égua estava. Ainda repousava, também pudera, possivelmente tivera uma viagem longa e visivelmente sofrida. O homem ficou quieto admirando o animal, tão belo seu pelo, crina, a força das patas feridas longas e finas, seu corpo cansado e machucado. Ela notou sua presença, abriu os olhos e se ergueu rápida como um raio. Voltou ao estado da noite anterior, agitada, ofegante, bufando e marcando passo forte no chão. O homem soltou seu chimarrão e caminhou até ela lentamente repetindo: “Calma, calma...”. Erguendo a mão direita, levando em direção da fronte mais uma vez, ela analisou a mão e a cheirou, em seguida aceitou o carinho. Ele então foi curar seu ferimentos. É preciso limpar bem um machucado de corda, ele queima e corta. Eram profundos também os machucados do peito e das patas. Limpou muito bem com água e sabão, depois aplicou uma pomada, por sorte não necessitavam de sutura. “O que terá acontecido contigo?” perguntou-se o homem, talvez esperando uma resposta da potranca.

Seguiu seus afazeres, que eram muitos, pois vivia e trabalhava sozinho. Precisava soltar os cavalos, buscar lenha, água, preparar comida, limpar recintos de animais, etc. No final do dia, a égua - que passou todo o tempo na cocheira repousando - já estava bem. Agora calma, olhava atentamente os movimentos que o homem fazia. Ele preparava um chimarrão, enquanto arrumava um lugar para sentar. De frente para a cocheira da nova amiga, deu de mão em seu violão e iniciou uma canção melancólica. Ela ficou atenta do início ao fim.

Ao raiar do dia seguinte, resolveu  tirar a égua da cocheira. Um animal tão grande não pode ficar sempre preso em local assim, deve ter um momento pra se rolar na grama, tirar o sal do pelo, correr um pouco. É, seria bom para ela. Pegou uma corda e foi ao encontro dela, abriu a portinhola da cocheira e entrou. Ela já não tinha mais receio do amigo humano, mas de cordas sim. Quando notou em sua mão o instrumento de contenção, ergueu-se nas patas traseiras e com uma das dianteiras derrubou o homem. A porta da cocheira aberta serviu para sua fuga desesperada, galopou em direção a porteira e de um salto voou sobre ela, foi em direção a mata mais uma vez, por onde veio, se foi.

Ele um pouco zonzo ainda do golpe que recebera, caído ao solo, ergue os olhos e vê a égua baia distante com a crina ao vento e a poeira que deixou no ar. Passou uma água no rosto, bateu a poeira da roupa e sentou para recuperar os sentidos. Pensativo, inquieto, um tanto descontente, passou o dia. Já era meia tarde quando decidiu embrenhar-se no mato e procurá-la, queria saber melhor, entender o que estava acontecendo, precisava disso. Ele sempre fora  tão habilidoso com os cavalos, como podia ter sido tão descuidado. Pegou seu chapéu e seguindo o rastro deixado pela égua, andou por horas. Passou por córregos, por relvas, subiu e desceu morros, assim como ela também fez.

Já ia caindo o sol quando ao longe ele pode ver dois pontos dourados. “É ela!" Foi caminhando lentamente ao encontro. Quando se aproximava conseguiu notar que ela estava feliz. Brincava, não era mais aquela fera arredia, ao invés de ofegante e sapateando estava agora dando pulos, sacudindo a cabeça e se erguendo nas patas traseiras, mas não para agredir, sim para brincar. Próxima a ela estava uma potra, pequena e desengonçada ainda, com suas patas finas e compridas, a crina dourada como a da mãe e seu pelo também era semelhante, só um pouco mais avermelhado. O homem sentou-se em silêncio e ficou por admirar a cena tão bela que seus olhos ali contemplavam.

Ele a tratou bem, curou suas feridas, alimentou, fez companhia, não podia entender o motivo pelo qual ela fugiu. Ela temia mais uma vez ser contida, agora era possível ver tudo o que a égua desejava era estar próxima de sua cria.

Passaram-se alguns minutos. Quando ela percebeu a presença indesejada, ergueu a cabeça na direção do intruso. Ele ficou quieto, enquanto ela vinha enfurecida em sua direção, bufando e pisando firme, soltando as patas traseiras em coices no ar. Chegou perto do homem sentado e o encarou, não queria estar outra vez em uma cocheira, não queria ser domesticada e menos ainda ver sua cria nessas condições. Talvez ela tenha pensado isso, mas nunca saberemos. Ele na calma de sua existência disse: “-Calma ruana, tu é égua livre, nem todo cuidado do mundo é capaz de te prender, cordas não te fazem bem, tu vieste até mim num momento de precisão, te ajudei, alimentei, dei de beber, curei tuas feridas e despertei outras quando tentei te colocar por cordas. Tu me cativaste pela beleza que possui, força que demonstra, contudo não pode ser minha e agora admiro mais ainda a tua liberdade, este ser selvagem que és, segue tua vida." Dito isto, ergueu-se, virando as costas, iniciando o caminho contrário que lhe trouxe até ali, acenou com o chapéu e retornou para seu lar.

A vida seguiu como tinha de ser. Cada um em seu mundo, às vezes junto à figueira contemplando o pôr do sol entra em devaneios e volta no dia em que teve aquele marcante encontro, lembra da alegria da égua e sua cria brincando livres em sua natureza primitiva. E ela, às vezes, ainda galopa com sua cria próximo daquele lugar, como se procurasse o amigo.

É preciso compreender que existem criaturas que são livres, não se sentem bem com amarras, por mais que se tente explicar isso com palavras ou mostrar com atitudes ou gestos, torna-se impossível. O que é livre deve permanecer assim, cada ser dotado de suas qualidades e propriedades únicas, com seus anseios e objetivos, todos com seu lugar no universo e com singular existência. Não se pode prender o que não quer ficar preso, a vontade deve ser maior do que qualquer amarra, assim são os homens e também os cavalos.

Edição: Lidiane Rodrigues medium.com/@lidsliro




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