Esta história se passa no interior do Estado do Rio Grande
do Sul, na fronteira do Uruguai, não saberei precisar a localidade, mas
tentarei descrever com o máximo de detalhes para que possam “ver” com clareza
as belezas deste lugar.
Tão longe
quanto a vista poderia vislumbrar um por de sol avermelhado, com toques de
laranja e amarelo, as nuvens escorriam pelo céu e estacionavam ali circundando
o astro rei que se escondia lentamente atrás de um morro. Havia uma enorme
figueira frondosa copada em forma de cogumelo, suas raízes enormes se
espalhavam pelo chão erguendo pedras e criando brotos. Sentado abaixo dela, em
um banco de madeira, curvado para frente, escorando um dos braços cansados do
serviço diário em uma das pernas, estava um homem de aparência cansada. Suas
vestes surradas de serviços esgotantes, era um trabalhador rural, domador de
cavalos. Este serviço esgota e cobra na carne de quem o toma por profissão.
Suas botas de cano alto na cor marrom, completamente empoeiradas e com barro no
solado, nos calcanhares suas esporas longas no papagaio com rosetas
pequenas. Sua bombacha fora um dia da cor marrom clara, hoje já está desbotada
após tanta exposição ao sol, surrada de esfregar cordas e entre as pernas o tecido já desgastado de
tanto montar em cavalos (ou como se fala por lá: sovar o lombo). Uma camisa
dobrada nas mangas na cor bege, um lenço curto na cor vermelha amarrado no
pescoço, na cabeça nada além de seus cabelos pretos e lisos cortados baixos e
curtos em um estilo militar. É claro que um homem do campo deve usar um chapéu,
mas nesta hora depois de estafante dia, tomado de suor e poeira, seu chapéu
estava repousando ao solo junto de um relho. O homem com uma aparência cansada,
pensativo admira o pôr do sol, solitário neste lugar tão distante onde habita.
O sopro do vento na copa das árvores, o relincho dos cavalos ao longe e o canto
de uma cotovia são as vozes que lhe fazem companhia, além é claro de seu
chimarrão indispensável. Consome esta bebida que acalma junto ao crepúsculo,
alimentando seu espírito e trazendo conselhos de muita sabedoria.
Rompendo o silêncio da localidade, o homem
ouve ao longe patas de cavalo em disparada. Ergue sua cabeça, atenta os
ouvidos, cada vez mais próximo esta, fica em pé e olha aos lados, na sua
esquerda um galpão feito de madeira e telhado com capim, que lhe serve como
morada, a sua frente baias de cavalos, na direita um descampado, onde o sol
acaba de se esconder e seus poucos raios insistem em brilhar, o céu já não tão
rubro, mas um tom de azul marinho vai se estendendo ao encontro do preto do céu
da noite criando um degrade de cores que enfeitiça o olhar. Olha atentamente
para trás de onde pode ouvir com clareza as patas de cavalo, que antes eram
distantes, agora já bem próximas. Ouve galhos quebrando e folhas sendo
pisoteadas no interior da mata, fica um pouco apreensivo e ansioso. Leva a mão
na faca que esta em sua cintura, como quem se prepara para uma luta, retira um
tanto da bainha, seu semblante se fecha e chega a apertar os dentes. Cada vez
mais próximo o barulho amplificado pela acústica da mata, as folhas caem das
árvores, os pássaros que já se aninhavam para esperar a noite acabam por voar
assustados com a surpresa.
Agora que
está bem próxima é possível ver marcas
profundas em suas patas traseiras e pescoço, provavelmente feitas por cordas.
Em suas patas dianteiras marcas de cortes, estas se alinham com outras no
peito, talvez tenha violado alguma cerca no caminho, concluiu o homem. Ele
estático olhando para ela, seus braços ao longo do corpo quase que imóvel, ela
também com olhos fixos nele, ofegante. Ainda é possível ver em seus flancos o
abrir e fechar dos pulmões, suas patas inquietas para cima e para baixo, parece
que quer sair em disparada, mas não pode, fica no mesmo lugar. Ele ergue sua
mão direita que antes segurava o cabo da faca, leva a palma ao encontro do
rosto da égua, seu movimento é lento para que ela não se assuste, mesmo assim
ela reage. “Calma!” diz o homem, ela olha, cheira fazendo um ruído com as
narinas, ele permanece com a mão erguida tentando ainda o contato. Ela aceita.
Quando a mão toca a fronte ambos se acalmam. Ele inicia um afago de leve no
rosto do animal, é possível ver suas orelhas virando cada uma pra um lado,
buscando algum perigo, aos poucos elas param e se voltam na direção do homem.
Agora, com a mão esquerda, ele afaga o pescoço, ela encosta a cabeça em seu
peito, ficam em silêncio trocam gestos sem que possam conversar. O lugar todo
se acalma, os pássaros tomam a seus ninhos para o repouso da noite que já
cobriu o céu. Aos poucos, um cativa o outro.
Passaram-se
horas do encontro, o homem se pergunta o que teria acontecido, por que ela
estaria tão assustada, por certo alguém lhe havia feito muito mal. Certamente
ela não iria lhe contar os detalhes de seus medos, não é de sua natureza falar,
ele teria que notar aos poucos nos detalhes. Colocou em um recipiente de
madeira um pouco de comida, em um balde ofereceu-lhe água. Ela aceitou, parecia
faminta. Indicou onde poderia repousar. Após se alimentar e beber, deitou e
adormeceu, sentia-se segura finalmente. O homem recolheu seus pertences que
estavam próximo à árvore e se foi para cama repousar, ainda pensado no
acontecido, mas sem respostas todavia.
No dia
seguinte, bem cedo, nem o sol havia saído, ele já estava pronto. Chimarrão na
mão, foi ver como a égua estava. Ainda repousava, também pudera, possivelmente
tivera uma viagem longa e visivelmente sofrida. O homem ficou quieto admirando
o animal, tão belo seu pelo, crina, a força das patas feridas longas e finas,
seu corpo cansado e machucado. Ela notou sua presença, abriu os olhos e se
ergueu rápida como um raio. Voltou ao estado da noite anterior, agitada,
ofegante, bufando e marcando passo forte no chão. O homem soltou seu chimarrão
e caminhou até ela lentamente repetindo: “Calma, calma...”. Erguendo a mão
direita, levando em direção da fronte mais uma vez, ela analisou a mão e a cheirou,
em seguida aceitou o carinho. Ele então foi curar seu ferimentos. É preciso
limpar bem um machucado de corda, ele queima e corta. Eram profundos também os
machucados do peito e das patas. Limpou muito bem com água e sabão, depois
aplicou uma pomada, por sorte não necessitavam de sutura. “O que terá
acontecido contigo?” perguntou-se o homem, talvez esperando uma resposta da
potranca.
Seguiu
seus afazeres, que eram muitos, pois vivia e trabalhava sozinho. Precisava
soltar os cavalos, buscar lenha, água, preparar comida, limpar recintos de
animais, etc. No final do dia, a égua - que passou todo o tempo na cocheira
repousando - já estava bem. Agora calma, olhava atentamente os movimentos que o
homem fazia. Ele preparava um chimarrão, enquanto arrumava um lugar para
sentar. De frente para a cocheira da nova amiga, deu de mão em seu violão e
iniciou uma canção melancólica. Ela ficou atenta do início ao fim.
Ao raiar
do dia seguinte, resolveu tirar a égua
da cocheira. Um animal tão grande não pode ficar sempre preso em local assim,
deve ter um momento pra se rolar na grama, tirar o sal do pelo, correr um
pouco. É, seria bom para ela. Pegou uma corda e foi ao encontro dela, abriu a
portinhola da cocheira e entrou. Ela já não tinha mais receio do amigo humano,
mas de cordas sim. Quando notou em sua mão o instrumento de contenção,
ergueu-se nas patas traseiras e com uma das dianteiras derrubou o homem. A
porta da cocheira aberta serviu para sua fuga desesperada, galopou em direção a
porteira e de um salto voou sobre ela, foi em direção a mata mais uma vez, por
onde veio, se foi.
Ele um
pouco zonzo ainda do golpe que recebera, caído ao solo, ergue os olhos e vê a
égua baia distante com a crina ao vento e a poeira que deixou no ar. Passou uma
água no rosto, bateu a poeira da roupa e sentou para recuperar os sentidos.
Pensativo, inquieto, um tanto descontente, passou o dia. Já era meia tarde
quando decidiu embrenhar-se no mato e procurá-la, queria saber melhor, entender
o que estava acontecendo, precisava disso. Ele sempre fora tão habilidoso com os cavalos, como podia ter
sido tão descuidado. Pegou seu chapéu e seguindo o rastro deixado pela égua,
andou por horas. Passou por córregos, por relvas, subiu e desceu morros, assim
como ela também fez.
Já ia
caindo o sol quando ao longe ele pode ver dois pontos dourados. “É ela!"
Foi caminhando lentamente ao encontro. Quando se aproximava conseguiu notar que
ela estava feliz. Brincava, não era mais aquela fera arredia, ao invés de
ofegante e sapateando estava agora dando pulos, sacudindo a cabeça e se
erguendo nas patas traseiras, mas não para agredir, sim para brincar. Próxima a
ela estava uma potra, pequena e desengonçada ainda, com suas patas finas e
compridas, a crina dourada como a da mãe e seu pelo também era semelhante, só
um pouco mais avermelhado. O homem sentou-se em silêncio e ficou por admirar a
cena tão bela que seus olhos ali contemplavam.
Ele a
tratou bem, curou suas feridas, alimentou, fez companhia, não podia entender o
motivo pelo qual ela fugiu. Ela temia mais uma vez ser contida, agora era
possível ver tudo o que a égua desejava era estar próxima de sua cria.
Passaram-se
alguns minutos. Quando ela percebeu a presença indesejada, ergueu a cabeça na
direção do intruso. Ele ficou quieto, enquanto ela vinha enfurecida em sua
direção, bufando e pisando firme, soltando as patas traseiras em coices no ar.
Chegou perto do homem sentado e o encarou, não queria estar outra vez em uma
cocheira, não queria ser domesticada e menos ainda ver sua cria nessas condições.
Talvez ela tenha pensado isso, mas nunca saberemos. Ele na calma de sua
existência disse: “-Calma ruana, tu é égua livre, nem todo cuidado do mundo é
capaz de te prender, cordas não te fazem bem, tu vieste até mim num momento de
precisão, te ajudei, alimentei, dei de beber, curei tuas feridas e despertei
outras quando tentei te colocar por cordas. Tu me cativaste pela beleza que
possui, força que demonstra, contudo não pode ser minha e agora admiro mais
ainda a tua liberdade, este ser selvagem que és, segue tua vida." Dito
isto, ergueu-se, virando as costas, iniciando o caminho contrário que lhe
trouxe até ali, acenou com o chapéu e retornou para seu lar.
A vida
seguiu como tinha de ser. Cada um em seu mundo, às vezes junto à figueira
contemplando o pôr do sol entra em devaneios e volta no dia em que teve aquele
marcante encontro, lembra da alegria da égua e sua cria brincando livres em sua
natureza primitiva. E ela, às vezes, ainda galopa com sua cria próximo daquele
lugar, como se procurasse o amigo.
É preciso
compreender que existem criaturas que são livres, não se sentem bem com
amarras, por mais que se tente explicar isso com palavras ou mostrar com
atitudes ou gestos, torna-se impossível. O que é livre deve permanecer assim,
cada ser dotado de suas qualidades e propriedades únicas, com seus anseios e
objetivos, todos com seu lugar no universo e com singular existência. Não se
pode prender o que não quer ficar preso, a vontade deve ser maior do que
qualquer amarra, assim são os homens e também os cavalos.
Edição: Lidiane Rodrigues medium.com/@lidsliro
Edição: Lidiane Rodrigues medium.com/@lidsliro